sábado, 20 de agosto de 2011

QUALIDADE DE VIDA, SAÚDE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Cíntia Rocha**

Damásio de Jesus*

Quando nos propusemos a escrever sobre qualidade de vida e dignidade humana, percebemos que nada é mais fácil do que fazê-lo em termos teóricos, no campo dos princípios gerais. E nada mais difícil do que intentar a aplicação desses princípios no dia-a-dia, como no tema da saúde da população.

No campo dos princípios gerais, entende-se por qualidade de vida um conjunto de coisas que tornam a vida agradável. Não se trata, pois, somente de sobreviver, mas de viver plenamente. Não se cuida de assegurar apenas aquele mínimo indispensável para a sobrevivência, mas sim de proporcionar uma série de condições que tornam a vida prazerosa e agradável. Sobre isso, os médicos falam em “nível de vida”.

Em termos filosóficos, diríamos que ao homem não basta o esse, mas faz-se indispensável o bene esse, ou seja, não é suficiente existir, é preciso viver bem. Até aí, tudo é muito simples. O próximo passo na exposição também será fácil de expor: esse bene esse é indispensável à dignidade da pessoa humana. Ou seja, todos os seres humanos, de várias etnias, de muitas nacionalidades e categorias sociais, por serem pessoas humanas têm direito a uma vida digna. Dignitas, no Latim, significa o fato de ser alguém digno, ou seja, merecedor, a algum título, de um determinado bem.

Dignidade é, pois, uma noção relacionada com a de mérito. No Latim clássico, ainda, dignitas era a forma de beleza imponente, majestosa e viril, própria do homem, em contraposição à venustas, que era a forma de beleza graciosa e leve, própria do sexo feminino. Independente de etimologias e significados históricos, entende-se por dignidade humana aquela forma de respeito, elevação e de honorabilidade de que todos os seres humanos são merecedores precisamente por serem pessoas humanas racionais e livres. A essa condição está associada, necessariamente, a noção de direitos humanos, com uma série de aplicações mais ou menos extensas, conforme as épocas e as culturas, mas tendendo a ser, nos tempos presentes, tão amplas quanto possível.

No final das contas, tudo se insere nos direitos humanos. Assim, todos os que tomarem do nosso pensamento haverão de concordar que um minimum de qualidade de vida é direito fundamental do ser humano e, assim, é indispensável à dignidade de sua pessoa. Até aqui, todos estamos de acordo. Acredito que, nesse plano doutrinário e teórico, a harmonia de entendimento seja total e unânime, seja nemine discrepante, como diziam os velhos juristas. Mas o que é indispensável para o bene esse de um ser humano? E o que é supérfluo ou meramente voluptuário para ele?

Recordamos que os velhos manuais de Direito Civil usavam três palavras, em gradação, para exprimir o grau de interesse que determinada coisa podia ter. Por exemplo, ao se tratar da conservação de um imóvel, falava-se em reformas “necessárias, úteis e voluptuárias”. As necessárias eram… necessárias. As úteis traziam vantagens, mas não se apresentavam como estritamente indispensáveis. Já as voluptuárias eram supérfluas e dispensáveis. A noção de supérfluo é também muito vaga. Varia de pessoa para pessoa. Algo pode ser supérfluo para uma e ser voluptuário para outra. Poder dispor de uma biblioteca variada e bem provida em nossa casa é algo indispensável para o nosso bene esse. Para nós, a posse de uma boa biblioteca não é algo supérfluo: é algo quase vital. Já para um simples pescador de beira de rio, tê-la é algo supérfluo. Hoje, ter uma casa com água corrente e instalações sanitárias, é absolutamente indispensável para qualquer pessoa. Não se pode classificar senão como indignas e indecentes as condições de quem carece desses melhoramentos que a vida moderna tende a tornar universais.

No palácio de Versalhes, porém, construído por ordem de Luís XIV, o Rei-Sol, no auge do luxo e requinte do Ancien Régime francês, não havia água corrente nem instalações sanitárias. Esses melhoramentos, que já na Idade Média, em certos mosteiros e abadias, eram usados, no refinadíssimo Palácio de Versalhes foram considerados supérfluos… A água era levada para as ligeiras abluções diárias em jarros e bacias. Contam o caso de certo médico de grande nomeada que faleceu, muito idoso, numa importante capital brasileira. Residia, havia mais de 50 anos, numa casa enorme, que ele mesmo projetara e construíra quando, já casado e pai de vários filhos, atingira uma situação econômica estável e pôde, com sua esposa, construir uma residência definitiva. Nessa residência, tudo o bom facultativo previra com pormenores.

A distribuição dos quartos, das janelas, o estudo das correntes de ar, a exposição dos cômodos à luz solar, nas várias épocas do ano, tudo, absolutamente tudo, o médico estudara minuciosamente com os engenheiros. Tratava-se de fazer a moradia perfeita, para a família numerosa, para a vida inteira! Pois bem, nessa imensa casa de três pavimentos havia apenas um único banheiro, para atender ao casal, seus oito filhos e às duas empregadas permanentes que a família contratava… Isso, hoje em dia seria impensável. Atualmente, qualquer projeto de apartamento, por mais modesto que seja, prevê pelo menos dois WC. Mas em meados do século XX, um médico abastado, ao projetar sua casa imensa, contentou-se com um único banheiro…

Por esses exemplos, nota-se como são relativas as noções de bens necessários e bens supérfluos. O próprio progresso, legítimo e desejável, das condições humanas se encarrega, pois, de criar novidades necessárias. Mas há também necessidades novas criadas artificialmente pelos meios de comunicação social e mecanismos de marketing. Há 20 anos, estavam aparecendo os primeiros celulares, caríssimos, enormes, incômodos e que funcionavam pessimamente.

Hoje, disseram-me que no Brasil o número de celulares está muito próximo de atingir o número de habitantes. Não pude verificar se é verdadeira a informação, mas o fato é que absolutamente todo mundo tem pelo menos um celular. Não ter celular, como não ter e-mail, como não ter RG ou CPF, é algo impensável. Pergunta-se, pois, se, nas atuais circunstâncias, ter um celular é algo necessário ou supérfluo? E possuir um carro? Na Europa, é muito comum pessoas de alto nível social e econômico utilizarem transportes públicos. No Metrô de Viena, encontramos executivos de paletó e gravata ao lado de simples trabalhadores. No Brasil, isso é raríssimo. Todos esses fatos mostram, à saciedade, que há supérfluos necessários para umas pessoas, não porém para outras; que certas coisas supérfluas no passado hoje são realmente importantes e que há necessidades artificiais, criadas pela propaganda maciça e alimentadas pela tendência à moda e ao consumismo.

Por tudo isso, a qualidade de vida é, sem dúvida, inseparável da dignidade humana. Mas o que é realmente necessário para uma vida ter qualidade? Lembramos, a propósito, um fato muito antigo. O grande Sócrates gostava de passear com seus discípulos no mercado de Atenas, mas nunca comprava nada. A quem estranhava o fato, respondia que ia para ficar contente. E explicava que, no mercado, sentia-se riquíssimo, pois constatava que não tinha a menor necessidade de muita coisa que era indispensável para fazer a felicidade dos outros.

Num mundo jurídico tão diversificado como o nosso, com normas que permeiam sua nascença de segundos em segundos, tem-se uma única certeza, o desafio de trazer à tona o princípio basilar de nossa Constituição da República, qual seja, o da Dignidade da Pessoa Humana na aplicação do Direito. Interessante destacar que este princípio, que se encontra logo no primeiro dispositivo de nossa Carta Magna, traduz um significado revelador de grande valia. Na área da saúde, há que se ter em mente que para assegurar a Dignidade da Pessoa Humana, a pessoa precisa possuir uma boa qualidade de vida, o que significa dizer ter saúde, tratamento condizente com sua saúde e com seu quadro clínico, ter acesso aos medicamentos imprescindíveis e necessários ao seu organismo.

Os conceitos qualidade de vida e dignidade da pessoa humana se entrelaçam, afinam-se e se tornam um só, no sentido de que uma boa qualidade de vida assegura uma vida digna. Neste passo, a questão para alguns, é séria, pois sequer têm consciência a respeito de informações que poderiam fazer diferença em suas vidas, como saber de seus mínimos direitos e reivindicá-los. Com efeito, vivemos num mundo jurídico cheio de surpresas, complexo e inovador, principalmente no que se refere ao aspecto da saúde. Campo que apresenta enorme relevância no que tange aos direitos dos pacientes, trazendo em seu bojo um conceito de segurança, qualidade de vida, dignidade da pessoa humana, que às vezes são conceitos esquecidos.

Nesta seara, importa saber que estes direitos concernem àqueles referentes aos direitos ao medicamento, ao tratamento, de lhe ser assegurado um benefício assistencial enquanto perdurar sua incapacidade etc. É importante frisarmos também que o art. 6º da nossa Constituição da República assim dispõe: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Sabemos que a maioria das doenças crônicas ocasiona gastos elevados e excessivos nas opções de tratamentos que a Medicina nos apresenta, de forma a retirar todo desconforto causado por essas doenças. O que muitas vezes não se sabe é como lidar com negativas dos planos de saúde que ocorrem com muita freqüência. São consultas e exames negados, descredenciamentos de profissionais da saúde, recusas de internações e cirurgias. Enfim, são inúmeras barreiras impostas, muitas vezes em momentos difíceis e penosos da vida. Noutro ponto, muitas pessoas não possuem condições financeiras para custear o melhor tratamento de forma particular, o mais adequado, devido aos custos descomunais, agravando ainda mais seu estado de saúde. Quando ocorrer um fato neste sentido se faz necessário que o paciente tenha em mente seus direitos assegurados, seja pela Constituição da República ou pela legislação ordinária. Como fazer? A quem se socorrer? Quais os caminhos a trilhar?

Na prática, a Justiça é o caminho mais rápido para que o consumidor consiga se submeter a alguns procedimentos que requeiram urgência para salvaguardar o bem jurídico de maior relevância, qual seja, sua VIDA!

Torna-se oportuno destacar a circunstância de que o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 47, reza: “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Significa dizer: havendo possibilidade de mais de uma interpretação de determinado dispositivo contratual, adotar-se-á aquela que mais favoreça o consumidor.

É relevante frisar a tentativa dos planos de saúde em “alterar” quais os procedimentos estariam expressamente excluídos; dá conta de que se trata de fato de contrato de adesão, onde tenta impor a vontade de uma das partes em detrimento da outra, desvirtuando-se o negócio jurídico. Assim, suposta disposição contratual que fosse embutida no contrato relativa à exclusão de atendimento, pelas razões expostas, impõe-se a não-aplicabilidade em face do a abuso reconhecido, mesmo considerado à vista dos princípios gerais do contrato, por violar o equilíbrio contratual e a boa-fé.

No tocante à saúde, referente aos direitos dos pacientes, é oportuno destacar a Lei n. 8.080/90, que trata das ações e serviços de saúde em todo o território nacional. O seu art. 6º determina: “Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS)…; d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica.”

Não bastassem todos direitos assegurados, que nos reserva nossa qualidade de vida e a dignidade que nos embute, o que nos faz refletir no mais intrínseco do nosso ser são as indagações do tipo: temos tanto direitos e onde eles estão? Como fazer para consegui-los? A quem cabe o socorro?

Chegamos a um ponto crítico diante destas indagações: pois se temos direitos, eles nos pertence. Então, por que tanta dificuldade, tanta burocracia para fazer valê-los? Eis a questão. A inversão de valores no nosso mundo atual é notória, haja vista que enquanto uns lutam por ter uma VIDA DIGNA, UMA QUALIDADE DE VIDA BOA, um tratamento digno, condizente com seu quadro de saúde, outros, em contrapartida, se deliciam nos arautos da burocracia. Sabendo-se que o direito atinge a todos, os deveres igualmente, o que se deve ter em mente “é cada um fazer sua parte”, pois só assim poderemos contar com um amanhã mais próspero, digno e eficiente em busca de uma melhor qualidade de VIDA. Só assim viveremos com dignidade.
*. Damásio de Jesus, Presidente do Complexo Educacional Damásio de Jesus.
**. Cíntia Rocha, Advogada na área de Saúde e Direitos do Consumidor; Membro das Comissões de Direitos Humanos e de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB/SP.

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